quarta-feira, 3 de novembro de 2010

CAPÍTULO FINAL

José Ramos debruçava-se sobre a mesa no canto do bar, angustiado. Olhava para o teto, para os lados, buscando algo que parecia ter perdido. Volta e meia tirava um caderno de anotações, rabiscava algo. Logo amassava e atirava longe. Soturno, com roupa de ontem, descabelado. Parecia alucinado. Pedrinho entrou, a fim de tomar “umas”. Notou a angustia do amigo Zé:

_ Vadeco, me dá uma. Bem gelada! – pediu a cerveja, encarando o canto do bar.

_ Ta na mão Pedrinho. Essa ta trincando! – Vadeco tinha um pano sujo que passava nas mesas, pendurado no ombro.

Pedrinho encheu o copinho americano e, com gosto, meteu tudo goela abaixo. Limpou a boca com a manga, fazendo pose de cowboy.

_ O que acontece com o Zé, Vadeco? Ali, todo estranho...

_ Ah! Pedrinho! O cara ficou assim a noite toda: Rabiscando num papel, rasgando e jogando fora. Mal tocou na bebida. Acho que é o tal livro que ele disse que anda escrevendo. - enquanto falava, Vadeco lustrava um copo com o pano pendurado no ombro.

_ O que?! Já faz mais de uma semana que falei com ele. Faltava o capítulo final, disse que ia ser moleza, poxa! Estava inspirado, me disse. - Pedrinho consternou-se um pouco. Vadeco chegou um pouco mais perto, como quem vai confidenciar, ainda esfregando o copo com o pano de mesa, e mandou:

_ Esse tal livro? De que se trata?

_ Não posso dizer, prometi ao Zé que não diria nada a ninguém. Quero manter a palavra, mas garanto: está ficando muito bom. –

Pedrinho era o melhor amigo literário de Ramos, talvez o único amigo, em qualquer área. Professor de literatura, havia gostado de algumas coisas que o amigo Zé escrevera, e o incentivava. “há talento nisso” Dizia sobre o trabalho de Ramos que melhorou muito sua escrita, chamando a atenção de Pedrinho qual se tornou seu maior conselheiro e crítico.

Pedrinho deu uma disfarçada, cumprimentou alguns amigos, fez uma graça aqui e ali, e foi falar com Ramos:

_ Zé, tudo em paz? - perguntou com receio da resposta.

_ Não Pedrinho, tudo em guerra! Merda! (...) Bloqueio, esse é o meu problema! Não consigo pensar mais! Não consigo terminar meu livro Pedrinho! – o sujeito rosnava feito um cão leproso, tendo um chilique.

_ Calma rapaz, isso é normal. - Pedrinho tentou amenizar – acontece com os grandes. Funciona assim, às vezes não funciona.

_ Mas, não pode ser, tenho que terminar meu livro. Não há tempo a perder! - Jose Ramos desabafava, quase choramingando.

_ Pare com isso Zé! Falta só um único capítulo. Você passou os últimos seis meses da sua vida nesse projeto e, te digo mais, está ficando uma jóia. Por que o desespero agora?

_ Você não entende Pedrinho, o tempo! – o amigo agarrou o ombro do escritor como quem vai dizer algo importante.

_ Zé...por favor...me ouça, você tem que relaxar, entendeu? Relaxar...vamos, tome uma dose. Vadeco! Manda uma daquela. - gritou para o que estava no outro lado do balcão, qual acenou positivo com a cabeça. Logo trouxe o pedido. Sem ao menos hesitar, José Ramos tomou num gole seco e sentou rendido.

Pedrinho além de amigo funcionava também como psicólogo. Aconselhava e consolava o amigo que parecia estar sempre no mundo da lua. José Ramos era um caso patológico, mas Pedrinho via uma pureza única em seu jeito bobo. Magro, um pouco tísico, cútis amarelada. Não tinha beleza alguma. Quando sorria, parecia mascara. Com tais atributos, não era fácil para José Ramos relacionar-se bem com outras pessoas, mas Pedrinho admirava o amigo que se mostrou um escritor de talento.

O livro em que José Ramos trabalhava já algum tempo era sua dor de cabeça agora. Tratava-se de um matador em série que seqüestrava suas vítimas e as torturava de forma criativa e única, antes de matá-las, isento a clichês. Mas, José Ramos travara no último capítulo e dali não saía.

Pedrinho conseguiu acalmar Zé, dando-lhe um porre. Sendo um bom amigo, levou Ramos para casa, fez um café e foi tratar o problema do livro. Com um calhamaço de papel nas mãos, conversaram bastante. Discutiram, concordaram, discordaram. E assim ficaram por horas até que Ramos, num ímpeto, sentou em frente ao computador e começou a escrever. Parecia um pianista em transe num concerto nas nuvens, não parava mais. O amigo, a tiracolo, vibrava como numa partida, cada parágrafo escrito. Assim passaram a noite e, pela manhã, o famigerado capítulo final estava pronto. Quase aos prantos, Ramos agradecia ao amigo que se despedia já com o sol forte.

Pedrinho herdara do pai morto uma bela casa ao estilo colonial, em um bairro tradicional da cidade. Tinha uma vida tranqüila, pois não dependia inteiramente de seu salário de professor. Ao chegar em casa, sentiu-se satisfeito. Começou a assoviar a nona de Beethoven tirando sua camisa. Transfigurou o semblante. Pegou umas chaves que havia pendurado atrás da porta da dispensa, abriu um cadeado que dava para um porão, desceu as escadas ainda no breu. Acendeu as luzes. Sentada numa cadeira, com mãos e pés atados, com um choro baixo e sofrido, estava ali uma jovem já sem forças, implorando ao seu algoz que a liberta-se. Pedrinho aproximou-se e, acariciando seus cabelos, disse em tom sombrio:

_Calma criança, não se preocupe, seu sofrimento vai acabar. Já temos o capítulo final.