terça-feira, 28 de agosto de 2012

MORTE NO CEMITÉRIO

Os raios de sol passavam oblíquos pela persiana rota, formando desenhos cubistas na parede do quarto que, imunda, cedia seus contornos à picasseana obra do acaso. O astro maior explodia lá pelas duas da tarde em um dia caloroso, sufocante, incomum para a época. A gana de mover um músculo desaparecera, desde o momento que deu conta de estar acordado. O sono foi embora, mas a simples idéia de abrir os olhos já lhe mortificava a alma - não havia alternativa - o tempo urgia. Mal vestiu-se e logo saiu em disparada. O desânimo ainda não o abandonara, também a encalorada tarde que sufocava e fazia escorrer pela espinha um suor melado. Caminhava a passos largos, sempre atentos ao relógio. A medida que percorria o caminho, sentia arder sua úlcera como nunca - era um sinal que as coisas não iam muito bem. "há muito tempo as coisas não andavam certas" - pensava enquanto caminhava sem desacelerar o passo - “... mas... quando as coisas foram certas? houve um tempo em que parecia que tudo estava entrando nos eixos, pura ilusão..." - virou a esquina que dava para o cemitério e sua mente afogou-se em amargas lembranças - era inevitável. No portão, um sujeito com um dos olhos murcho - aspecto soturno - lhe esperava demonstrando um pouco de impaciência e certo nervosismo. "está atrasado" - disse o homem. Sem lhe responder, passou direto pelo portão. Estava tomado pela ansiedade, queria acabar logo com tudo aquilo. - "você o viu entrando?" - o sujeito não disse palavra, mas acenou positivo com a cabeça. - "trouxe a encomenda?" - outro aceno semelhante - "vamos acabar logo com isso". O lugar, mesmo naquela tarde ensolarada, ainda preservava o aspecto lúgubre, sombrio. Estatuetas rotas de anjos, santos e cruzes de concreto, acentuavam o desespero tácito que pairava como neblina sobre um lago. Os dois caminhavam desoladamente como quem vai para o próprio abate - não se ouvia o respiro. A cena se desdobrava como em um conto de Poe. O outro lhe entregou o objeto de metal que reluzia ao sol escaldante, já carregado e pronto. - "ali... vê... lá está... ele! como eu havia dito - disse o homem do olho murcho. Entre dois jazigos maiores, havia uma tumba modesta, um homem, já com certa idade - prostrado - trazia flores nas mãos. Com a arma em punho mirou a nuca do infeliz, que absorto em seu mórbido transe, não percebeu seu assassino. Hesitante, mãos trêmulas, quase percebia-se pela camisa seu peito pulsar. Ouviu-se um estampido seco, e o homem caiu para frente com o rosto em seu próprio sangue que esvaía-se pela boca ouvido e nariz. voltou para o cúmplice ainda trêmulo - "está feito" - disse. O outro - do olho murcho - mandou uns pontapés no corpo já sem vida, "Desgraçado! “Viu o que você nos obrigou a fazer” - logo caiu em prantos sendo amparado pelo comparsa - "vamos embora antes que seja tarde" - disse o outro, ainda com a arma em punho. Os dois irmãos deixaram a tétrica cena em que o pai esvaia-se em sangue, no túmulo da esposa e mãe dos seus filhos. Marcos Barreto

quinta-feira, 19 de maio de 2011

O PUGILISTA

Parte I

As luvas de treino estavam surradas e não havia mais onde por remendos. As mãos doíam um pouco quando socava o saco que também foi remendado como tudo no ginásio que quase caia aos pedaços. Seu salário de vigilante noturno não lhe permitia gastos nesse mês, suas novas luvas teriam que ficar para mais tarde. Mas a vontade e a determinação venciam qualquer obstáculo, afinal a chance que ele havia esperando enfim lhe aparecera, essa era a sua vez, pensava.
Seu ritmo de treino havia dobrado por recomendação de seu técnico e o pugilista estava em sua melhor forma. Até então nosso herói não tinha grandes feitos em sua modesta carreira de pugilista, mas aquela luta era importante, talvez a mais importante em sua carreira. “a tevê vai estar lá, todo mundo vai ver a direita que tem esse garoto” dizia seu técnico que agenciava seu pupilo aos financiadores para sua carreira de lutador. Absolutamente o pugilista tinha uma direita potente e já havia feito alguns beijar a lona, mas ainda penava no amadorismo e tinha que virar-se entre os treinos e seu trabalho que, literalmente, lhe tirava o sono.
Vivia só, em um quarto de pensão. Não tinha muitos amigos a não ser um ou outro que conhecia na academia que não o perdoavam por ser o único visto como promessa. Seu amor era o esporte, sua vida era o ringue. Já havia dois anos da morte de sua mãe e ainda a conservava em um porta- retrato ao lado da sua cama. Ali ficou como um altar e a falecida como santa qual beijava todas as noites antes de dormir. Seu pai, nunca conhecera.
Faltava pouco para o grande dia. O dia em que todo o esforço de uma carreira suada seria compensado. O dia em que ele iria provar o seu valor como atleta pugilista. Tudo preparado e arranjado e, na véspera, um pouco de tensão era mais que normal, dizia seu treinador. “Preocupante seria se você não estivesse nervoso, eu estaria uma pilha”, acrescentou. Mas o que deixou nosso herói um pouco encabulado foi a chegada de uma figura um tanto singular, que lhe chamou atenção por confabular por mais de meia hora com seu técnico, um assunto deveras importante, pois foi tratado a portas fechadas.
O pugilista voltou a concentrar-se no treino, esquecendo o assunto “não é da minha conta” concluiu.

Parte II


O dia tão esperado havia chegado e o nosso atleta estava confiante. Sabia que seu oponente era forte e extremamente técnico e não queria, de forma alguma, subestimar o adversário, mas havia tanta certeza em sua vitória que a simples idéia de perder a luta não lhe passava pela mente, nem por um instante. “Treinei muito, mereço essa vitória.” Pensava no vestiário, poucos minutos antes de iniciar o combate, enquanto socava em ritmo frenético o punch-ball de teto.
_ um dois, um dois, um dois três quatro, um dois, um dois, um dois três quatro!
Foi interrompido pelo técnico, que parecia mais ansioso que ele.
_ Ei! Pare um pouco aí! Quer ficar cansado antes de começar a luta? Sente aqui, vamos engraxar você e por as luvas. Chegou a hora.
Seu treinador amarrou as luvas e passou vaselina em seu tronco braços e rosto. A vaselina servia para resvalar os socos do adversário. Depois, agarrou forte seu ombro e fixou uma mirada, que já falava por si só, mesmo assim disse:
_ Eu nunca tive uma chance como a que você está tendo. Nunca fui um excelente boxeador, mas desde sempre soube reconhecer um, e você tem a chama - enquanto o técnico lhe instruía, se podia ouvir o burburinho que se formava fora do vestiário antes de começar o combate.
_Professor eu...
_Cale-se que eu não acabei ainda – interrompeu o treinador – como estava dizendo, sei reconhecer um atleta com futuro e Lá fora está o seu futuro. Sua carreira como boxeador depende dessa luta de hoje. Há pessoas hoje aqui, que lhe darão uma chance se virem o que eu vejo todos os dias, é só o que eu peço, seja o que você é naquele ringue e derrube-o, nocauteie aquele desgraçado! Você não sabe o quanto me sacrifiquei e estou me sacrificando por você. – o pugilista achou exagerado o drama de seu treinador, principalmente quando viu que uma lágrima lhe corria o rosto. – eu te considero o filho que não tive, e estou muito feliz por você, como um pai fica feliz por seu filho. Vá lá e mostre a eles com quem eles estão se metendo!
O pugilista sentiu-se aliviado quando o treinador soltou seu ombro. Havia achado estranho todo aquele discurso “sentimentalóide”, não parecia com o homem reservado que fora seu técnico durante os anos que convivera com ele na academia. “Que choradeira maluca foi aquela?”


Parte III


O ginásio estava cheio a ponto de surpreender até os mais otimistas. Como seu técnico havia prometido, a imprensa e sua parafernália estavam em peso. Alguns figurões observavam o movimento, mas fixaram os olhares em nosso herói, quando esse foi apresentado. Com o típico roupão, o pugilista caminhava em direção ao ringue com seu rosto oculto no capuz, dando-lhe um aspecto misterioso. Seu treinador caminhava ao seu lado carregando algumas toalhas como um fiel escudeiro, e alguns dos que treinavam com ele vinham logo atrás, todos uniformizados formando equipe. Ao subir o ringue e passar pelas cordas, fez um aquecimento, dando socos no ar. O juiz chamou ambos os lutadores para adverti-los das regras básicas. O lutador deu uma olhada intimidadora em seu adversário e voltou para o canto do ringue, a fim de receber suas instruções finais para o inicio da luta.
_ Não se esqueça do que te disse, mantenha a calma, não se afobe, estude bem o adversário e derrube-o no terceiro ou quarto assalto, quando ele já estiver cansado. Use seu direto para abrir o supercílio. O sangue faz com que a visão embace. Vá lá, à hora é agora!
Em meio aos gritos e urros dos que esperavam o começo da luta, soou o gongo. O pugilista dirigiu-se ao centro do ringue e estendeu seu braço em cumprimento ao seu adversário, mas esse o ignorou. Como havia sido orientado, nosso herói manteve sua guarda fechada. Observava e defendia-se das investidas do seu oponente, girando e saindo do seu raio de ação, soltando um jabe aqui e ali. O primeiro assalto foi tecnicamente pobre e quase sem ação, provocando algumas vaias dos descontentes mais fervorosos.
_Estamos bem ¬ - disse o treinador que estava no corner – Eu conheço esse figura, agora ele vai vir como um touro a fim de decidir a luta. Sua guarda vai abrir um pouco e você poderá encaixar alguns golpes.
Soou o gongo e, como havia previsto o corner, o outro lutador veio com tudo para decidir o confronto. Nosso atleta desviava das rápidas investidas do oponente encaixando um golpe aqui e ali, mas esse assalto foi melhor para o seu oponente que havia posto o pugilista nas cordas e castigado a ponto levá-lo a lona. Mas sua queda foi acidental. Enroscou-se nas cordas atrapalhando-se nos pés. Soou o gongo e o segundo assalto havia acabado. Seu adversário pontuava à frente.
_ Eu previ essa queda! – disse o treinador - Ele pensa que você já era, mas ele é quem está se cansando. Segure mais um pouco. Mais esse round apenas. No quarto assalto ele terá cansado e você vai derrubá-lo.
A platéia estava em polvorosa. Já não havia mais vaias.
O terceiro round tinha começado e as previsões do treinador havia se concretizado. O nosso pugilista mais uma vez foi para as cordas, mas segundos antes de acabar o assalto, conseguiu encaixar um de seus famosos golpes de direita, abrindo um talho acima do olho esquerdo do seu adversário, fazendo com que o sangue cobrisse todo o seu rosto.
_ É isso aí garoto, estamos no cronograma! – incentivava-o enquanto lhe enxugava o rosto do suor - Agora é o momento certo para atacar com tudo, concentre-se no supercílio ferido. Quero ver aquele cara na lona. Vamos lá, essa é a hora!
Soou o gongo e o nosso herói foi com tudo para cima do seu adversário, que já demonstrava cansaço e apreensão. O curativo que haviam feito em seu supercílio abriu já no primeiro golpe, cobrindo seu rosto com sangue. Nosso pugilista, mais descansado, castigou seu oponente nas cordas, com diretos, ganchos e cruzados tão bem colocados, que fez a platéia delirar em êxtase. Seu oponente já não agüentava mais e caiu semi- inconsciente do último golpe que levara. A luta havia acabado. Como num filme, todos que ali estavam invadiram o ringue para abraçá-lo e dividir com ele o sabor de uma vitória suada que, a muito, havia cultivado. O repórter da tevê local, entre ombros e apertos, extasiado com que havia testemunhado, em vão tentava romper a multidão para conseguir sua entrevista histórica. Nosso herói ainda um pouco tonto com tudo que estava acontecendo percebeu a ausência do seu treinador.
_ Onde está o professor? – perguntou a um de sua equipe.
_ não sei, estava aqui agora.
Ouviu-se um som agudo, um estampido, vindo do vestiário. Parecia um tiro.

Epílogo


Mestre Sansão observava seu melhor aluno que batia com destreza o saco, dando golpes ligeiros e precisos enchendo seu professor de orgulho. “esse garoto está pronto” pensava. Seu devaneio foi interrompido quando entrou, a passos largos, uma figura bastante conhecida pelo mestre.
Temos que falar... a sós – disse-lhe. – há algum lugar reservado nessa pocilga?
Siga-me – entraram num escritório recheado de troféus de lutas antigas, fotos do mestre com Mohamed Ali, Rock Marciano e uma em destaque com Eder Jofre, davam uma importância monumental ao lugar.
_Você sabe por que estou aqui... não sabe?
_Sei muito bem! – disse o mestre.
_ Então você sabe o que deve fazer, você vai dizer pro seu garoto perder. Tem muito dinheiro investido nisso, eles mandaram lhe dizer que se seu garoto vencer, eles acabam com você. Nem essa pocilga que você chama de ginásio vai ficar em pé, entendeu? - o outro socou a mesa como que intimidando – estamos entendidos?
_ Sim entendi muito bem – disse o mestre. Com um tapinha no rosto do professor, ao estilo carcamano o outro se despediu. Antes de sair olhou para cima e para os lados com desdém. Escarrou o chão na saída.

quarta-feira, 3 de novembro de 2010

CAPÍTULO FINAL

José Ramos debruçava-se sobre a mesa no canto do bar, angustiado. Olhava para o teto, para os lados, buscando algo que parecia ter perdido. Volta e meia tirava um caderno de anotações, rabiscava algo. Logo amassava e atirava longe. Soturno, com roupa de ontem, descabelado. Parecia alucinado. Pedrinho entrou, a fim de tomar “umas”. Notou a angustia do amigo Zé:

_ Vadeco, me dá uma. Bem gelada! – pediu a cerveja, encarando o canto do bar.

_ Ta na mão Pedrinho. Essa ta trincando! – Vadeco tinha um pano sujo que passava nas mesas, pendurado no ombro.

Pedrinho encheu o copinho americano e, com gosto, meteu tudo goela abaixo. Limpou a boca com a manga, fazendo pose de cowboy.

_ O que acontece com o Zé, Vadeco? Ali, todo estranho...

_ Ah! Pedrinho! O cara ficou assim a noite toda: Rabiscando num papel, rasgando e jogando fora. Mal tocou na bebida. Acho que é o tal livro que ele disse que anda escrevendo. - enquanto falava, Vadeco lustrava um copo com o pano pendurado no ombro.

_ O que?! Já faz mais de uma semana que falei com ele. Faltava o capítulo final, disse que ia ser moleza, poxa! Estava inspirado, me disse. - Pedrinho consternou-se um pouco. Vadeco chegou um pouco mais perto, como quem vai confidenciar, ainda esfregando o copo com o pano de mesa, e mandou:

_ Esse tal livro? De que se trata?

_ Não posso dizer, prometi ao Zé que não diria nada a ninguém. Quero manter a palavra, mas garanto: está ficando muito bom. –

Pedrinho era o melhor amigo literário de Ramos, talvez o único amigo, em qualquer área. Professor de literatura, havia gostado de algumas coisas que o amigo Zé escrevera, e o incentivava. “há talento nisso” Dizia sobre o trabalho de Ramos que melhorou muito sua escrita, chamando a atenção de Pedrinho qual se tornou seu maior conselheiro e crítico.

Pedrinho deu uma disfarçada, cumprimentou alguns amigos, fez uma graça aqui e ali, e foi falar com Ramos:

_ Zé, tudo em paz? - perguntou com receio da resposta.

_ Não Pedrinho, tudo em guerra! Merda! (...) Bloqueio, esse é o meu problema! Não consigo pensar mais! Não consigo terminar meu livro Pedrinho! – o sujeito rosnava feito um cão leproso, tendo um chilique.

_ Calma rapaz, isso é normal. - Pedrinho tentou amenizar – acontece com os grandes. Funciona assim, às vezes não funciona.

_ Mas, não pode ser, tenho que terminar meu livro. Não há tempo a perder! - Jose Ramos desabafava, quase choramingando.

_ Pare com isso Zé! Falta só um único capítulo. Você passou os últimos seis meses da sua vida nesse projeto e, te digo mais, está ficando uma jóia. Por que o desespero agora?

_ Você não entende Pedrinho, o tempo! – o amigo agarrou o ombro do escritor como quem vai dizer algo importante.

_ Zé...por favor...me ouça, você tem que relaxar, entendeu? Relaxar...vamos, tome uma dose. Vadeco! Manda uma daquela. - gritou para o que estava no outro lado do balcão, qual acenou positivo com a cabeça. Logo trouxe o pedido. Sem ao menos hesitar, José Ramos tomou num gole seco e sentou rendido.

Pedrinho além de amigo funcionava também como psicólogo. Aconselhava e consolava o amigo que parecia estar sempre no mundo da lua. José Ramos era um caso patológico, mas Pedrinho via uma pureza única em seu jeito bobo. Magro, um pouco tísico, cútis amarelada. Não tinha beleza alguma. Quando sorria, parecia mascara. Com tais atributos, não era fácil para José Ramos relacionar-se bem com outras pessoas, mas Pedrinho admirava o amigo que se mostrou um escritor de talento.

O livro em que José Ramos trabalhava já algum tempo era sua dor de cabeça agora. Tratava-se de um matador em série que seqüestrava suas vítimas e as torturava de forma criativa e única, antes de matá-las, isento a clichês. Mas, José Ramos travara no último capítulo e dali não saía.

Pedrinho conseguiu acalmar Zé, dando-lhe um porre. Sendo um bom amigo, levou Ramos para casa, fez um café e foi tratar o problema do livro. Com um calhamaço de papel nas mãos, conversaram bastante. Discutiram, concordaram, discordaram. E assim ficaram por horas até que Ramos, num ímpeto, sentou em frente ao computador e começou a escrever. Parecia um pianista em transe num concerto nas nuvens, não parava mais. O amigo, a tiracolo, vibrava como numa partida, cada parágrafo escrito. Assim passaram a noite e, pela manhã, o famigerado capítulo final estava pronto. Quase aos prantos, Ramos agradecia ao amigo que se despedia já com o sol forte.

Pedrinho herdara do pai morto uma bela casa ao estilo colonial, em um bairro tradicional da cidade. Tinha uma vida tranqüila, pois não dependia inteiramente de seu salário de professor. Ao chegar em casa, sentiu-se satisfeito. Começou a assoviar a nona de Beethoven tirando sua camisa. Transfigurou o semblante. Pegou umas chaves que havia pendurado atrás da porta da dispensa, abriu um cadeado que dava para um porão, desceu as escadas ainda no breu. Acendeu as luzes. Sentada numa cadeira, com mãos e pés atados, com um choro baixo e sofrido, estava ali uma jovem já sem forças, implorando ao seu algoz que a liberta-se. Pedrinho aproximou-se e, acariciando seus cabelos, disse em tom sombrio:

_Calma criança, não se preocupe, seu sofrimento vai acabar. Já temos o capítulo final.

terça-feira, 24 de agosto de 2010

O POETA DISSE ADEUS

No dia do lançamento do seu nono livro de poesia, Queiroz viu-se um pouco melancólico, pois havia um número inexpressivo de admiradores do seu mais novo trabalho literário. O dia seguinte foi ainda pior,já que as páginas culturais do diário o haviam “descascado”, pondo seu mais novo “filho” nas estantes da desonra. Como se já não bastasse a apatia geral relacionada à sua obra, um novo nome surgira, nos arautos poéticos da cidade. Miguel Araújo havia recém lançado seu primeiro livro e, justificadamente, pondo-se entre os melhores, a nível nacional. Queiroz deprimiu-se.
Um dia, no bar, embriagando-se para afogar as mágoas, aparece do nada, Miguel, acompanhado de duas senhoritas que se rendiam à fala doce do menestrel contemporâneo. Augusto Queiroz, em seus “dourados” vinte poucos anos também circulava por aí com belas senhoritas, mas agora, só e derrotado, lhe restara somente uma dor de cotovelo aguda por Miguel. O poeta notara a solidão do colega, e o chamou para que se juntasse a ele – “Venha Queiroz, está sobrando uma” – Queiroz, sentindo-se um pouco tripudiado, foi arrastando-se à mesa de Miguel. Queria saber o que aquele garoto, com pouco mais da metade da sua idade, tinha a dizer que ele já não havia dito. Ainda não tinha tido a audácia de ler o seu livro.
_ Meninas, esse é Augusto Queiroz, um dos poetas que influenciou o que escrevo, bem, (...) de uma forma ou outra, convenhamos. – Risos - Queiroz não quis entender o “de uma forma ou de outra”, mas viu-se provocado. Sentou-se, meio que sem jeito, e sentiu a frieza das duas que mal o cumprimentaram. -
_ Queiroz, um prazer tê-lo entre nós. Quer beber alguma coisa? Eu pago. Tenho grana agora, meu livro está saindo como água no deserto, as pessoas tinham sede Queiroz. – Sentiu um ódio profundo por Miguel, mas aceitou que lhe pagasse uma bebida:
_ uísque duplo, sem gelo. – O garçom trouxe. Queiroz tomou em um gole, olhou para a cara debochada de Miguel, e lançou: - O que você sabe sobre o que eu escrevo? Parece-me que você não tem muito respeito pelas pessoas que você “diz” ter sofrido influência.
_ Para lhe ser sincero Queiroz, li alguma coisa, há muito tempo atrás, mas não vi nada de impressionante, parecia a tudo que já havia visto, (...) faltava o novo, você sabe Queiroz o novo sempre vem. – As duas que estavam com Miguel riram pelos cantos, tentando esconder o deboche.
_ E você diz que trouxe o novo, é isso? Você não acha muita pretensão?
_ Queiroz, agora, eu lhe pergunto: Você já leu meu livro?
_ Não.
_ Leia, talvez você aprenda alguma coisa. – Sem titubear, Queiroz lançou-se a fim de aperta-lhe o pescoço, mas Miguel, mais jovem e mais disposto, livrou-se rápido da investida de Queiroz e lhe acertou o estômago com tamanha força que demorou a Queiroz recuperar-se. Ainda caído, levou alguns humilhantes chutes traseiro antes de Miguel sair porta afora rindo. – Triste e desonrado, Queiroz foi para casa. Antes, comprou uma garrafa.
Alguns dias depois, Queiroz ainda não havia saído de casa. Não tinha coragem de por a cara para fora depois da humilhação sofrida por Miguel, mas soube através de um dos poucos amigos que sobrara, o fim dramático do poeta que se afogara em seu próprio vômito após uma semana gabando-se de si mesmo e bebendo como um louco. Mas o que trouxe a morte a Miguel foi o “pico” que tomara desmedidamente, sem prever as conseqüências. A dose foi mortal.
Depois do fato, Queiroz leu o famigerado livro de Miguel e voltou a escrever como louco.“Tenho que admitir: Muito bom.” - Disse mordendo os lábios. Influenciado, lançou seu novo trabalho no mesmo ano da morte de Miguel, que todos já haviam esquecido. “É obra prima” agora diziam as páginas culturais a respeito de seu novo livro. Augusto Queiroz foi visto desfilando com as mesmas duas que estavam com Miguel, antes da sua morte.

Marcos Barreto

segunda-feira, 16 de agosto de 2010

VESTIDO VERMELHO DE CETIM

Cada vez que Jorge abria o guarda-roupa, caia em prantos. Não suportava a ausência da mulher que tanto amava e havia perdido a pouco em um trágico acidente de automóvel. Dez anos de casamento e tudo acabara de forma abrupta e trágica, sobrando apenas aquele vestido vermelho de cetim, que dera à mulher no aniversário de uma década de matrimônio. O vestido tornou objeto de culto à esposa que lembrava amargurado, as formas tão bem definidas do corpo que o vestia. Jorge não entendia porque a vida havia sido tão cruel, tirando de si, o amor que o fazia vivo. -“Não há razão para existir” - Pensava. A idéia do suicídio lhe passava pela cabeça e era algo que Jorge tratava com seriedade - “Como farei? Envenenando-me?... Não... Pode ser dolorido... um tiro?... Vai fazer muita sujeira. Talvez... cortando os pulsos... isso sim deve doer.”- Divagava um tanto patético, como iria tirar a própria vida, agarrado ao vestido vermelho de cetim que pertencera à mulher. Passado algum tempo, Jorge sofria cada vez menos a ausência da esposa e foi abandonando a idéia do suicídio. Resolveu retomar sua vida aos poucos. Desde o acidente da esposa Jorge não havia dado as caras na empresa em que trabalhava e todos ficaram um tanto surpresos, quando o viram passando pela recepção.
Cidinha era nova na empresa e soube, através dos seus colegas, o infortúnio de Jorge. Quando o viu pela primeira vez, algo lhe tocou profundamente. Sentiu compaixão e não conseguiu tirar os olhos de Jorge, qual notou certo interesse da colega que até então não conhecia. Cidinha era o tipo de mulher que conquistava a todos com seu jeitinho meigo e enormes olhos claros que mudavam de coloração à medida do dia. Tinha formas privilegiadas, e vestia-se com sobriedade. Era o tipo de mulher que poderia dar sentido à vida de Jorge que muito precisava. A aproximação dos dois foi inevitável e em poucos dias de convivência no escritório, o romance foi consumado. Cidinha estava tão envolvida com Jorge que resolveu pedir as contas do trabalho, assim não teria nada que impedisse os dois de ficarem juntos. O tempo passou e Jorge finalmente pode despedir-se do vestido vermelho de cetim. Nunca comentou com Cidinha seu descontrole pelo tal vestido. Em seu lugar, estavam as coisas de Cidinha que resolveu ir viver ao lado do seu amor. Casaram no mesmo ano em que se conheceram, para a alegria de Jorge, que não mais sofria a morte da esposa.
Certo dia, Cidinha, resolveu fazer uma surpresa para Jorge. Foi até uma boutique, comprou um lingerie, coincidentemente e sem ter a mínima idéia, comprou também um vestido vermelho de cetim, idêntico ao da esposa falecida do seu agora marido. Preparou um jantar especial e gastou uma quantia expressiva em uma boa garrafa de vinho. Quando Jorge chegou e casa e viu Cidinha em um vestido idêntico ao da falecida esposa, surtou. Virou a mesa onde Cidinha havia posto o jantar que havia preparado com tanto carinho para o esposo, e aos safanões, arrancou de Cidinha o tal vestido. Berrando dizia que ninguém, jamais iria poder comparar-se à esposa falecida. Magoada, Cidinha o abandonou para sempre. Jorge depois tentou argumentar que havia cometido um erro, e que isso nunca mais iria acontecer, mas não adiantou. Cidinha não tinha mais amor por Jorge, tinha medo agora. Passado um mês do ocorrido, Jorge matou-se com um tiro na boca.


Marcos Barreto

A MENINA E O CRUCIFIXO DE METAL

A menina olhava fixa para o crucifixo de ponta cabeça na cabeceira da cama, enquanto o padrasto deitava sobre ela o corpo úmido e seboso de um dia cheio na oficina. Torcia para que a mãe chegasse logo do trabalho, pois o tilintar das chaves na porta era o aviso que seu martírio, por aquele dia, havia acabado. Questionava o santo por não tê-la salvo, já que assistira a tudo, todos esses anos e até então não havia feito nada. Mas não havia recurso, não havia a quem recorrer se não ao homem pregado na cruz de metal na cabeceira da cama. Tentou um dia falar com a genitora que a esbofeteou de “prima” e a chamou de mentirosa, disse que se a filha desgraçasse seu casamento, iria se virar sozinha pelas ruas. Muitas vezes a investida do padrasto era mais de uma vez por dia, a ponto de a pobre menina adoecer tamanha era a voracidade do agressor. Pensou em fugir, mas para onde? Mal tinha completado treze anos e a vida não tinha sido gentil, nem entre os seus, “imagine nas ruas” - pensava - “Se tivesse um pai para recorrer” - mas a única lembrança paternal, era a figura plácida na janelinha do caixão. Não lembrava mais do rosto vivo do pai, apenas lhe vinha na memória a expressão vazia e sem vida de dentro da urna. As coisas na escola não andavam bem, mas ninguém dava à mínima. Nesse dia em especial saiu um pouco mais cedo, pois havia percebido que seus dias de menina tinham acabado. Ansiosa e um pouco doente, foi direto para casa. Já haviam dito a ela que esse dia estava prestes e ela tinha que se preparar, mas algo lhe atingira na alma, trancou-se no quarto e começou a rezar diante do crucifixo de metal. Observou o quão bonito era o objeto, com detalhes minuciosos e inscrições que ela não tinha a ideia mínima do seu significado. Questionou se o sujeito crucificado havia passado por tormento igual ao que ela estava passando. Notou o peso do objeto, quando tirou da parede. Assustou-se pelos golpes brutos dado na porta de seu quarto: “Nós já conversamos sobre portas trancadas em minha casa, não conversamos?”- era o padrasto –“Hoje estou doente, por favor, me deixe em paz!” – argumentou a menina – Mas não houve resposta e a porta foi abaixo com apenas um golpe do sujeito que entrou bufando em cólera – “Olha só o que você me fez fazer, você e a puta da sua mãe só me dão prejuízo.” – pegou a menina pelo pescoço, como quem fosse estrangular, e a deitou com violência na cama. Começou a rasgar sua roupa, expondo o corpo pouco definido da jovem que lutava sem sucesso contra a investida do seu malfeitor. O homem, ainda com as mãos sujas de graxa, percorreu seu íntimo e percebeu a recente mudança - “Oh! Minha menina está ficando mocinha”, – arrancou-lhe a calcinha, e meteu a cabeça em meio as suas pernas. A menina, angustiada, buscou o santo na parede, mas não encontrou. Lembrou que o havia tirado, tateou pela cama e sentiu o metal frio. Olhou para si, e viu o topo calvo da cabeça do padrasto, ainda em meio as suas pernas, sentiu náuseas, apertou com mãos firmes o crucifixo em seu peito, levantou-o a meia distância, hesitou por um momento e o cravou na nuca do homem que expirou rápido. Toda suja com o sangue do padrasto que se misturava ao seu, foi até a sala da casa, sentou-se no sofá e ligou o aparelho de televisão, na tela, um programa para jovens. Quando a mãe chegou do trabalho, viu o estado da menina. Correu para o quarto e encontrou o corpo fresco do marido. Voltou para a sala, deu um safanão na filha e trancou-se no quarto do casal. Uma semana depois, os vizinhos sentiram o forte odor de putrefação e chamaram a polícia. A menina foi encontrada no sofá inconsciente, o aparelho ainda estava ligado. O corpo do padrasto jazia no quarto sem suas partes. A mãe, em outro cômodo, nua, pulsos cortados e com o membro do marido enfiado em sua vagina.

SAÍDA RADICAL

Durante toda a sua vida, César havia tentado melhorar as coisas para si. Acreditou que boa conduta civil, domingos de missa e um pouco de simpatia, já seriam suficientes para o sucesso. Mas as coisas estagnaram um pouco depois dos trinta. Sua vida resumiu-se em um casamento frustrado, e uma distribuidora de bebidas que amargava o vermelho já alguns meses. A faculdade de administração, não lhe dera o empreendedorismo necessário para seu crescimento como comerciante e teve que se virar, vendendo espetinhos de carne, em terminais de ônibus, para equilibrar o orçamento. Como se já não bastasse seu “affair” extraconjugal, lhe comunicara um atraso em seu período. Pela primeira vez, César sentiu-se inseguro, e no quadro da depressão. Certa noite, disse à esposa que iria “bater uma bola” com os amigos e que depois iria tomar “umas e outras”, sua esposa disse que não se importava mais com o que ele iria, ou não fazer. Todos sabiam sua intenção.
Seus encontros com a amante eram muito bem calculados. Magda também tinha marido e não podia, em hipótese nenhuma, ao menos desconfiar de seu romance com César. O esposo passava meses em viagem e César, aproveitava então, para fazer algumas visitinhas noturnas, mas dessa vez, a coisa era mais séria e os ânimos floresceram rápido, quando Magda confirmou a gravidez:
_Cesar, você me ama?
_Uma coisa não tem nada haver com outra.
_Mas esse filho é seu César e eu te amo...podemos simplesmente...sumir. Deixe tudo para traz, afinal você vive reclamando de sua vida...vamos ter outra...juntos. - Enquanto Magda argumentava uma saída radical para o problema, César, ficou parado, fixo num ponto. Hesitou por um momento, refletiu mais um pouco, e disse por final:
_ Faça as malas, não tenha pressa, pegue tudo que precisar inclusive o passaporte. Faça uma carta de despedida, afinal, o pobre tem que saber o porquê, a esposa o deixou, mas não cite o meu nome - Dada as instruções, Magda disparou feliz para o quarto a fim de fazer as malas. Como orientada, escreveu a carta despedindo-se do esposo, sem citar o nome do amante. Quando voltou para a sala, com a carta em punho, achou estranho o chão estar forrado com plásticos e jornais, “César cadê você?” por um instante lhe veio à mente um filme de máfia que havia visto há algum tempo atrás. Por um milésimo de segundo, sentiu uma dor aguda na nuca e desfaleceu-se. César enrolou-a nos plásticos e jornais que, estrategicamente, ali havia posto, e levou o corpo para o banheiro. La separou os membros da amante pelas juntas e embalou tudo cuidadosamente. O que havia no estômago, foi descarga a baixo. Fez uma faxina geral, pensava em suas digitais e em vestígios de sangue. Convenceu-se que estava tudo limpo e ordenado, colocou as bagagens e o que restou do corpo da amante, no porta- malas do carro. Rodou alguns quilômetros, até distanciar-se o suficiente, para não levantar suspeitas. Parou o carro, desceu as malas, queimou tudo, menos o que restou do corpo. Voltou para casa já pela madrugada.
Depois do ocorrido, César mudou um pouco. Preocupava-se menos com as coisas, deixou a igreja de lado e sentiu-se, estranhamente feliz. Seu casamento continuava na mesma e a distribuidora de bebidas, ainda não havia se levantado, mas seu espetinho, vendido nos terminais de ônibus, virou um sucesso.

Marcos Barreto

CIRCULO VICIOSO

Dirceu havia tido uma manhã dura na empresa em que trabalhava, mas pior foi a demissão, que Dirceu achou injusta, pois reconhecia em si, a dedicação dada em tantos anos de empenho. Desolado, foi para casa esperando a compreensão da esposa, que havia deixado um pouco de lado, devido às intermináveis horas a mais em seu escritório que, lembrando com amargura, já não era mais seu. Sua casa já havia deixado de ser modesta e lhe dava um pouco de orgulho, pois toda a dedicação à sua reforma, já a destacava pelas demais. O bairro não era dos melhores, mas também não era dos piores e sua casa era linda e quitada. “Encontrarei outro trabalho”- pensava consigo – “Que se dane! Tenho algum guardado, vou levar minha esposa para uma segunda lua de mel” – “Buenos Aires, sempre quis conhecer Buenos A ires” - Divagava enquanto caminhava, pois seu carro havia também sido cruel e lhe deixado na mão, algumas quadras de casa. A idéia de viajar lhe deu um pouco de ânimo afinal.
Ao chegar a casa sentiu-se um pouco amargurado e foi à procura da esposa, achou estranha, a porta do quarto estar trancada e pensou o óbvio, mas não quis acreditar. “Clarice, você está ai?” Bateu na porta e de súbito ouviu alguma movimentação, sem dar de ombros, derrubou a porta com tudo, flagrando a esposa seminua ao lado de um, que tentava escapulir pela janela sem sucesso. Voou no pescoço do adversário com força dobrada, e o fez cair sobre o criado mudo, espatifando a cabeça do desafeto na quina por muitas e muitas vezes, até que seu crânio amoleceu, deixando exposto o que seria parte do cérebro. Clarice chocou, percebeu sua vida em risco e tentou a debandada, mas foi logo agarrada pelos cabelos e teve um fim semelhante ao do amante. Dado o fato, fez as malas e ateou fogo em sua bela casa, antes de partir para Buenos Aires. Dirceu hoje vive já há mais de dez anos na capital argentina, e a sete está casado com uma bela portenha. Julga-se afortunado pelo seu novo trabalho, pela esposa e pelo fato de nunca ter sido incomodado pelo acontecido, mas Dirceu não sabe que seu trabalho está em risco e sua querida mulher já não é mais a mesma.


Marcos Barreto

UM PARA OITO

Policial Gomes sempre foi o mais durão de todos na corporação. Gabava-se que havia nascido para combater o crime e tinha um ódio particular por traficantes e usuários de drogas. Dizia também que os maconheiros eram um tipo de doença humana e que ele era a cura, tinha visto isso num desses filmes de produção hollywoodiana. Sua cara carrancuda mais parecia uma máscara e seu andar desengonçado o deixava um pouco hilário, mas não tinha vocação nenhuma para a comédia. Quando encostava com a viatura a rapaziada tremia na base. Todos riam com o seu jeitão meio bobo, mas quando ele estava por perto os nervos iam à flor da pele, eram tapas, bofetões, chutes no rabo. Não precisava ter culpa no cartório, bastava estar por perto da boca de fumo que já era suspeito. Até seus irmãos de farda tinham certa apreensão pelo soldado Gomes, mas isso não o poupava dos deboches traiçoeiros. Em vinte anos de corporação, havia mandado sete para o “vinagre”, todos traficantes, e estava em busca do oitavo. Discurso também esse tirado em uma de suas incursões em tele seriados e filmes da tevê. Tinha uma esposa fatigada por três filhos adolescentes que lhes sugavam toda a energia. Em casa era o mesmo soldado machão e trazia todos em rédeas curtas, já havia feito o mais velho comer um “cigarrinho”.
Certo dia, voltando para casa depois de um dia monótono de trabalho, resolveu pegar carona com um colega. Veio comentando que um dia sem ação era um dia perdido e que o sangue ainda lhe fervilhava nas veias. Já perto de casa percebeu uma estranha movimentação num beco escuro. Gomes precipitou-se e saiu já com arma em punho. - “Parado aí seus vermes” - Disse. Dois garotos com grandes bonés enterrados na cabeça assustaram-se deixando o cigarro de maconha cair. Gomes percebeu que um dos garotos não lhe era estranho, aproximou-se um pouco mais e surpreendeu-se ao ver seu filho mais velho com cara de espanto e as mãos trêmulas no ar. O sangue lhe subiu e num ímpeto lançou-se em direção ao filho a fim de esbofeteá-lo. No frenesi que se instalava, deixou sua arma cair acidentalmente que, tocando no chão, disparou uma única vez dilacerando a jugular do filho. O outro saiu em disparada. Agonizando, o menino morreu em poucos segundos. No dia da missa de sétimo dia do filho, Gomes não apareceu na igreja. Sua esposa, quando voltou para casa, o encontrou pendurado. A autópsia revelou que Gomes havia ingerido 400 gramas de maconha antes de se enforcar.


Marcos Barreto