quinta-feira, 19 de maio de 2011

O PUGILISTA

Parte I

As luvas de treino estavam surradas e não havia mais onde por remendos. As mãos doíam um pouco quando socava o saco que também foi remendado como tudo no ginásio que quase caia aos pedaços. Seu salário de vigilante noturno não lhe permitia gastos nesse mês, suas novas luvas teriam que ficar para mais tarde. Mas a vontade e a determinação venciam qualquer obstáculo, afinal a chance que ele havia esperando enfim lhe aparecera, essa era a sua vez, pensava.
Seu ritmo de treino havia dobrado por recomendação de seu técnico e o pugilista estava em sua melhor forma. Até então nosso herói não tinha grandes feitos em sua modesta carreira de pugilista, mas aquela luta era importante, talvez a mais importante em sua carreira. “a tevê vai estar lá, todo mundo vai ver a direita que tem esse garoto” dizia seu técnico que agenciava seu pupilo aos financiadores para sua carreira de lutador. Absolutamente o pugilista tinha uma direita potente e já havia feito alguns beijar a lona, mas ainda penava no amadorismo e tinha que virar-se entre os treinos e seu trabalho que, literalmente, lhe tirava o sono.
Vivia só, em um quarto de pensão. Não tinha muitos amigos a não ser um ou outro que conhecia na academia que não o perdoavam por ser o único visto como promessa. Seu amor era o esporte, sua vida era o ringue. Já havia dois anos da morte de sua mãe e ainda a conservava em um porta- retrato ao lado da sua cama. Ali ficou como um altar e a falecida como santa qual beijava todas as noites antes de dormir. Seu pai, nunca conhecera.
Faltava pouco para o grande dia. O dia em que todo o esforço de uma carreira suada seria compensado. O dia em que ele iria provar o seu valor como atleta pugilista. Tudo preparado e arranjado e, na véspera, um pouco de tensão era mais que normal, dizia seu treinador. “Preocupante seria se você não estivesse nervoso, eu estaria uma pilha”, acrescentou. Mas o que deixou nosso herói um pouco encabulado foi a chegada de uma figura um tanto singular, que lhe chamou atenção por confabular por mais de meia hora com seu técnico, um assunto deveras importante, pois foi tratado a portas fechadas.
O pugilista voltou a concentrar-se no treino, esquecendo o assunto “não é da minha conta” concluiu.

Parte II


O dia tão esperado havia chegado e o nosso atleta estava confiante. Sabia que seu oponente era forte e extremamente técnico e não queria, de forma alguma, subestimar o adversário, mas havia tanta certeza em sua vitória que a simples idéia de perder a luta não lhe passava pela mente, nem por um instante. “Treinei muito, mereço essa vitória.” Pensava no vestiário, poucos minutos antes de iniciar o combate, enquanto socava em ritmo frenético o punch-ball de teto.
_ um dois, um dois, um dois três quatro, um dois, um dois, um dois três quatro!
Foi interrompido pelo técnico, que parecia mais ansioso que ele.
_ Ei! Pare um pouco aí! Quer ficar cansado antes de começar a luta? Sente aqui, vamos engraxar você e por as luvas. Chegou a hora.
Seu treinador amarrou as luvas e passou vaselina em seu tronco braços e rosto. A vaselina servia para resvalar os socos do adversário. Depois, agarrou forte seu ombro e fixou uma mirada, que já falava por si só, mesmo assim disse:
_ Eu nunca tive uma chance como a que você está tendo. Nunca fui um excelente boxeador, mas desde sempre soube reconhecer um, e você tem a chama - enquanto o técnico lhe instruía, se podia ouvir o burburinho que se formava fora do vestiário antes de começar o combate.
_Professor eu...
_Cale-se que eu não acabei ainda – interrompeu o treinador – como estava dizendo, sei reconhecer um atleta com futuro e Lá fora está o seu futuro. Sua carreira como boxeador depende dessa luta de hoje. Há pessoas hoje aqui, que lhe darão uma chance se virem o que eu vejo todos os dias, é só o que eu peço, seja o que você é naquele ringue e derrube-o, nocauteie aquele desgraçado! Você não sabe o quanto me sacrifiquei e estou me sacrificando por você. – o pugilista achou exagerado o drama de seu treinador, principalmente quando viu que uma lágrima lhe corria o rosto. – eu te considero o filho que não tive, e estou muito feliz por você, como um pai fica feliz por seu filho. Vá lá e mostre a eles com quem eles estão se metendo!
O pugilista sentiu-se aliviado quando o treinador soltou seu ombro. Havia achado estranho todo aquele discurso “sentimentalóide”, não parecia com o homem reservado que fora seu técnico durante os anos que convivera com ele na academia. “Que choradeira maluca foi aquela?”


Parte III


O ginásio estava cheio a ponto de surpreender até os mais otimistas. Como seu técnico havia prometido, a imprensa e sua parafernália estavam em peso. Alguns figurões observavam o movimento, mas fixaram os olhares em nosso herói, quando esse foi apresentado. Com o típico roupão, o pugilista caminhava em direção ao ringue com seu rosto oculto no capuz, dando-lhe um aspecto misterioso. Seu treinador caminhava ao seu lado carregando algumas toalhas como um fiel escudeiro, e alguns dos que treinavam com ele vinham logo atrás, todos uniformizados formando equipe. Ao subir o ringue e passar pelas cordas, fez um aquecimento, dando socos no ar. O juiz chamou ambos os lutadores para adverti-los das regras básicas. O lutador deu uma olhada intimidadora em seu adversário e voltou para o canto do ringue, a fim de receber suas instruções finais para o inicio da luta.
_ Não se esqueça do que te disse, mantenha a calma, não se afobe, estude bem o adversário e derrube-o no terceiro ou quarto assalto, quando ele já estiver cansado. Use seu direto para abrir o supercílio. O sangue faz com que a visão embace. Vá lá, à hora é agora!
Em meio aos gritos e urros dos que esperavam o começo da luta, soou o gongo. O pugilista dirigiu-se ao centro do ringue e estendeu seu braço em cumprimento ao seu adversário, mas esse o ignorou. Como havia sido orientado, nosso herói manteve sua guarda fechada. Observava e defendia-se das investidas do seu oponente, girando e saindo do seu raio de ação, soltando um jabe aqui e ali. O primeiro assalto foi tecnicamente pobre e quase sem ação, provocando algumas vaias dos descontentes mais fervorosos.
_Estamos bem ¬ - disse o treinador que estava no corner – Eu conheço esse figura, agora ele vai vir como um touro a fim de decidir a luta. Sua guarda vai abrir um pouco e você poderá encaixar alguns golpes.
Soou o gongo e, como havia previsto o corner, o outro lutador veio com tudo para decidir o confronto. Nosso atleta desviava das rápidas investidas do oponente encaixando um golpe aqui e ali, mas esse assalto foi melhor para o seu oponente que havia posto o pugilista nas cordas e castigado a ponto levá-lo a lona. Mas sua queda foi acidental. Enroscou-se nas cordas atrapalhando-se nos pés. Soou o gongo e o segundo assalto havia acabado. Seu adversário pontuava à frente.
_ Eu previ essa queda! – disse o treinador - Ele pensa que você já era, mas ele é quem está se cansando. Segure mais um pouco. Mais esse round apenas. No quarto assalto ele terá cansado e você vai derrubá-lo.
A platéia estava em polvorosa. Já não havia mais vaias.
O terceiro round tinha começado e as previsões do treinador havia se concretizado. O nosso pugilista mais uma vez foi para as cordas, mas segundos antes de acabar o assalto, conseguiu encaixar um de seus famosos golpes de direita, abrindo um talho acima do olho esquerdo do seu adversário, fazendo com que o sangue cobrisse todo o seu rosto.
_ É isso aí garoto, estamos no cronograma! – incentivava-o enquanto lhe enxugava o rosto do suor - Agora é o momento certo para atacar com tudo, concentre-se no supercílio ferido. Quero ver aquele cara na lona. Vamos lá, essa é a hora!
Soou o gongo e o nosso herói foi com tudo para cima do seu adversário, que já demonstrava cansaço e apreensão. O curativo que haviam feito em seu supercílio abriu já no primeiro golpe, cobrindo seu rosto com sangue. Nosso pugilista, mais descansado, castigou seu oponente nas cordas, com diretos, ganchos e cruzados tão bem colocados, que fez a platéia delirar em êxtase. Seu oponente já não agüentava mais e caiu semi- inconsciente do último golpe que levara. A luta havia acabado. Como num filme, todos que ali estavam invadiram o ringue para abraçá-lo e dividir com ele o sabor de uma vitória suada que, a muito, havia cultivado. O repórter da tevê local, entre ombros e apertos, extasiado com que havia testemunhado, em vão tentava romper a multidão para conseguir sua entrevista histórica. Nosso herói ainda um pouco tonto com tudo que estava acontecendo percebeu a ausência do seu treinador.
_ Onde está o professor? – perguntou a um de sua equipe.
_ não sei, estava aqui agora.
Ouviu-se um som agudo, um estampido, vindo do vestiário. Parecia um tiro.

Epílogo


Mestre Sansão observava seu melhor aluno que batia com destreza o saco, dando golpes ligeiros e precisos enchendo seu professor de orgulho. “esse garoto está pronto” pensava. Seu devaneio foi interrompido quando entrou, a passos largos, uma figura bastante conhecida pelo mestre.
Temos que falar... a sós – disse-lhe. – há algum lugar reservado nessa pocilga?
Siga-me – entraram num escritório recheado de troféus de lutas antigas, fotos do mestre com Mohamed Ali, Rock Marciano e uma em destaque com Eder Jofre, davam uma importância monumental ao lugar.
_Você sabe por que estou aqui... não sabe?
_Sei muito bem! – disse o mestre.
_ Então você sabe o que deve fazer, você vai dizer pro seu garoto perder. Tem muito dinheiro investido nisso, eles mandaram lhe dizer que se seu garoto vencer, eles acabam com você. Nem essa pocilga que você chama de ginásio vai ficar em pé, entendeu? - o outro socou a mesa como que intimidando – estamos entendidos?
_ Sim entendi muito bem – disse o mestre. Com um tapinha no rosto do professor, ao estilo carcamano o outro se despediu. Antes de sair olhou para cima e para os lados com desdém. Escarrou o chão na saída.